Eu ainda sou do tempo da Filipa Vacondeus com o seu ar "supé-chique" a ensinar donas-de-casa de classe média a preparar pratos "supé-giros" a partir de restos de comida.
Ainda sou do tempo em que o Manuel Luís Goucha era um magricela discreto que também dava a sua perninha nas rubricas de culinária nos programas multi-usos da televisão pública.
Sou tão antiga que me recordo do Michel com a sua careca reluzente e pronúncia de emigra, do chefe Silva e de outros tantos cozinheiros, vulgares homens e mulheres de avental, que partilhavam receitas simples com ar banal nos raros momentos em que a comida era assunto.
Hoje, é impossível não fazer zaping entre dezenas de canais e chocar com dois ou três programas de culinária, apresentados por chefs que são uma espécie de pop stars ou sex symbols.
Se há uns anos, quando a minha querida Mãezinha me quis começar a ensinar os básicos do arroz e dos refogados, recusei o desafio clamando que na minha casa toda a refeição se prepararia por passe de mágica entre o congelador e o micro-ondas, nos tempos que correm qualquer moça (ou moço) que se preze tem de ser capaz de preparar um menu degustação com dez pratos, combinando ingredientes inusitados com recurso a fórmulas de alquimia.
Ufa! É cansativo!
Vejo programas como o Master Chef da Austrália e fico abismada como enfermeiras ou marceneiros percebem tanto sobre reduções, espumas, acidulantes, brunoises, chiffonades e ratatouilles, cozinhando pratos absolutamente extraordinários sem o auxílio de uma Bimby!
A elevação das técnicas culinárias ao estatuto de artes decorativas, a transformação dos cozinheiros simplórios do nosso imaginário em chefs do tipo casual chic, coincide com uma época em que supostamente devíamos estar todos a reduzir o orçamento gasto em mercearia.
Na prática, os chefs que enchem tantas horas de televisão são apenas entertainers.
Assistimos aos programas para absorver ideias, para nos sentirmos inspirados, para nos abstrairmos do tédio que é ter de fazer o jantar sete dias por semana, até ao final das nossas vidas.
Claro que estamos a comer diferente. Apresentar um prato com bife a cavalo rodeado de batatas fritas está tão out como as botas texanas ou as calças com cintura acima do umbigo.
Qualquer cidadão socialmente ligado que se preze coloca sobre um prato de design arrojado uma porção moderada de bife ao lado de uma palete de rúcula e tomate cereja, fotografando tal instalação gráfica para oportuna publicação legendada nesse diário que é o Facebook.
Ainda hoje não consigo perceber porque os pratos com comida recebem invariavelmente mais likes do que uma música de sonoridade fácil ou um comentário oportuno sobre alguma actualidade partilhada nos feeds.
Quando Anthelme Brillant-Savarin (filósofo francês) dissertou, em pleno sec XIX, sobre a premissa "diz-me o que comes que eu digo-te quem és", jamais imaginou que quase 200 anos mais tarde uma parte significativa da humanidade andaria a revelar ao mundo a sua personalidade através de fotografias de comida.
Segundo os psicoterapeutas, no nosso subconsciente a comida é uma forma de amor.
Se assim é, provavelmente endeusamos esta forma de comer fantástica com a mesma intensidade romântica com que na nossa infância sonhávamos com contos de fada com final feliz...
O conceito não é novo e fiquei surpreendida por este endereço ainda estar disponível. Afinal o óbvio nem sempre é uma evidência para o comum dos mortais. Confirma-se que as boas ideias, por mais banais e banalizadas, podem sempre ser usadas, recicladas, convertidas em tesourinhos deprimentes ou elevadas ao estatuto de vintage.
Na Verdade, são imensos os programas, sobre culinária ornamental, com manifesta ausência da vulgaridade dos pratos convencionais, que de tão complexos, não podem ser confecionados na rotina do corre, corre do dia a dia !....
ResponderEliminarConcordo! Estes programas são de puro entretenimento e estão ao nível do "A voz" ou "Dança com as estrelas". São apenas para ver... não para reproduzir em casa.
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