Qualquer pessoa que tenha passado pelo mercado de trabalho na década de noventa teve - ou esteve perto de ter, ou pelo menos conhece quem tenha tido - um vislumbre de uma carreira como a dos executivos que se vêem no cinema, um salário acima da média, carro de serviço topo de gama, cartão de crédito de empresa, estadias em hotéis cinco estrelas, jantares de luxo e cocktails de negócios em ambiente de festa.
Claro que a esta distância a vida que tivemos nos parece muito mais excêntrica, mas a verdade é que no meu caso, por exemplo, o salário que auferia aos vinte e cinco anos era similar ao que tenho hoje, o que só pode significar que o meu rendimento era pornográfico no remoto ano de 1998, assumindo pelo bem da minha auto-estima e sanidade mensal que recebo nesta década o que o mercado justamente paga a uma chefia intermédia com a minha experiência e habilitações académicas.
A vida mudou para toda a gente.
Há aqueles, que antecipando o descalabro financeiro ou movidos pela mais genuína e ingénua vontade, deixaram voluntariamente cargos de direcção em empresas com nome estrangeiro, mudaram-se para um monte alentejano com a intenção de se dedicarem à agricultura gourmet ou ao turismo étnico. Estes são os que fizeram o tal downshifting que em tempos foi uma espécie de moda.
Há outros, que se viram obrigados a mudar de vida pelo acumular de hipotecas.
Em relação aos que desceram de escala sem vontade própria há padrões de negação facilmente identificáveis numa análise sociológica feita por amadores entre dois troços de auto-estrada.
Na essência, quem muda para pior sem o querer, agarra-se ao consumo como a bóia de salvação que confirma o seu status, como se as coisas que se compram e o quanto que estas valem fossem um indicador vital de personalidade.
Na prática, o marketing e as marcas, a forma como tantos produtos e empresas se comunicam. se posicionam e se apresentam com seus símbolos e significados, fomentam uma espécie de segregação social que nos classifica e estratifica num complexo e subjectivo sistema de castas nem sempre flexíveis mas raras vezes estanques.

A nossa paranóia social pelas aparências dita regras subliminares complexas, nem sempre coerentes ou racionais.
Por exemplo, em tempos de crise, os membros de um clã de classe média-alta-assim-assim compreende que uma família se prive de umas férias em regime tudo incluído quando atinge os limites de todos os plafonds, mas tal tolerância para a moderação não concebe que gente que é gente (ou que se julga mais gente do que os demais) possa prescindir de alguns fins-de-semana na Comporta (ou em Moledo, para os do norte) ou de umas escapadelas ao Algarve no auge da época alta.

Da mesma forma que uma mudança de latitude significa uma transformação radical na percepção da classe social a que o sujeito pertence, também a troca de carro pode ser um sinal estridente de crise financeira, patologia infecciosa que repudia os que gravitam no mesmo ecossistema.
Muitos dos que são obrigados a vender o carro de milhares de euros para pagar prestações em atraso, quando querem manter as aparências não escolhem um Audi A4 em segunda mão, compram um Smart. Um carro em segunda mão é sinal inequívoco de desgraça, mesmo que venha com jantes em liga leve e estofos em pele. Um Smart, pelo contrário, é um carro engraçado, uma espécie de gadget para utilização urbana, uma justificação credível para a opção por um utilitário que nem sequer é barato.
São muitos os exemplos caricatos e cínicos que podemos encontrar nesta sociedade onde crescem os novos-pobres, aqueles que uma época gloriosa num momento da vida catapultou para um consumo esbanjador, e que agora se digladiam de forma criativa para manter a aparência sofisticada e chique que inventaram para si próprios, entre os espólios de uma riqueza fictícia e um engenhoso instinto de sobrevivência assente em cartões de plástico.
Sem comentários:
Enviar um comentário